Há uns dias, numa audição no Parlamento Europeu, Piero Cipollone do Banco Central Europeu (BCE) respondeu a uma pergunta de um eurodeputado descrevendo o Euro Digital como infra-estrutura: “como se estivéssemos a construir linhas ferroviárias que depois podem ser usadas por quem quiser lá meter o seu comboio”. Provavelmente mais comparações destas ajudariam o europeu comum a perceber do que se trata.
O que é o Euro Digital?
Segundo o BCE, o Euro Digital seria uma forma digital de moeda, emitida pelo banco central e acessível a todos na área do euro.
Não seria uma criptomoeda – apesar de fazermos essa associação quando se fala em moedas digitais. Da mesma maneira que o BCE emite moedas e notas, o Euro digital constituirá numerário que mantém o seu valor facial.
Teremos uma carteira digital nos nossos telefones, ligada a uma conta bancária ou offline, onde podemos ter o valor em euros que quisermos e usaremos essa carteira para pagamentos nas lojas, na internet ou entre particulares (quem não tem telefone poderá ter euros digitais em cartões de pagamento como os de débito).
Haverá integração com as apps bancárias e poderemos levantar dinheiro nas caixas multibanco com essa carteira digital, transformando os euros digitais em notas bancárias.
Tal como as notas que trazemos na carteira, os euros digitais não vão render juros!
Porque precisamos de um Euro Digital?
- Soberania Monetária e Questões de Segurança:
- Competição dos EUA: Os pagamentos com cartão eram em 2023 eram 54% de todas as transações que não em numerário. Desses pagamentos, sistemas internacionais (Visa, Mastercard, wallets Apple Pay e Paypal, etc.) dominam 61% dos pagamentos. Na primeira metade de 2024, esses sistemas internacionais representaram 66% das transações digitais. Com o crescimento do e-commerce essa share de mercado tende a aumentar. Neste momento, 13 dos 20 países na zona euro dependem exclusivamente de sistemas internacionais para os seus pagamentos.
- Falta de confiança na administração dos EUA e questões de instabilidade geopolítica: da mesma maneira que estamos a canalizar o investimento em defesa para empresas europeias, podemos estar sujeitos a disrupções no sistema de pagamentos se não o controlamos.
- Stablecoins dos EUA: Cipollone disse que o Euro Digital não quer competir com as stablecoins americanas mas como o governo americano quer estimular o uso deste tipo de criptomoedas corremos o risco, estando na dependência de sistemas de pagamentos americanos, de sofrermos uma substituição de moeda, perdendo depósitos e fortalecendo o papel do dólar nos pagamentos internacionais. E, pior ainda, acrescento eu, a família Trump tem a sua própria stablecoin e sabe-se lá se não vai ser essa a ungida pelo Tesouro americano.
Política monetária
Perder o controle de pagamentos por aumento de share das empresas de pagamentos americanas, perder controle das divisas por passarmos a usar stablecoins americanas significaria uma perda de soberania monetária e um enfraquecimento do sector bancário. Um sector bancário forte é essencial porque é pelo sistema bancário que a política monetária do BCE se transmite. Com o Euro Digital podemos assegurar que 3 mil milhões de euros em pagamentos, que agora são feitos em outras divisas, ficariam dentro do sistema bancário europeu.
Que questões se levantaram na audição no Parlamento Europeu?
Privacidade das transações: Cipollone disse que cada transação terá três tipos de informação: um código do pagador, um montante e um código do beneficiário. O BCE não tem maneira de saber quem são estes pagadores e beneficiários. Os bancos encriptam estes códigos e só eles conhecem as identidades. Não é possível ao BCE bloquear as transacções. Por exemplo, o pagamentos ligados a criminalidade e terrorismo serão investigados ao nível dos prestadores de serviços de pagamento.
Porquê uma solução pública quando já existem sistemas de pagamento privados europeus na Europa? Há 20 anos que um privado já podia ter implementado um meio de pagamento pan-europeu e não aconteceu. É uma questão de soberania e precisamos da autoridade do BCE para o implementar. Os sistemas nacionais (por exemplo o MB Way) estão entrincheirados nos seus respectivos países, têm standards diferentes, mecanismos de detecção de fraude locais. A sua expansão implicaria um esforço hercúleo de internacionalização, convencendo os vendedores e lojistas pela Europa fora a aceitarem os seus meios de pagamento, tendo de utilizar os seus terminais e POS… o Euro Digital garantirá standards comuns e custo zero para o seu uso corrente. Com a adopção deste standard do Euro Digital, qualquer empresa de pagamentos poderá internacionalizar mais facilmente (as tais linhas do comboio acima).
Custo para o contribuinte: o funcionamento do Euro Digital será pago pelas receitas do direito de senhoriagem do BCE e não custará nada ao contribuinte.
Privacidade das funcionalidades programáveis: não será o BCE a criar funcionalidades; o euro digital será uma infra-estrutura onde os bancos podem criar funcionalidades e produtos para os seus clientes. Falou-se de transações condicionais e numa consulta com público e entidades falaram-se de vários casos de uso que o Euro Digital poderia proporcionar. Por exemplo: quando se reserva um serviço o valor em euros pode ser cativado na carteira e só é libertado quando o serviço é efectuado.
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Ler o discurso de Piero Cipollone ao Parlamento Europeu aqui.
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